As Repúblicas integram uma das muitas tradições de Coimbra
visto que fazem parte da história da cidade desde o século XIV e reúnem também em
si uma riqueza que tem atravessado as décadas nos aspetos mais variados da
vivência humana. São vinte e oito as repúblicas existentes, todas elas
diferentes, com o objetivo primordial de união, irreverência e comunidade.
Será que as pessoas gostavam de viver numa república? Inquirimos 45 pessoas a fim de tentar percebê-lo.
À conversa com Zita Moura, moradora na República dos Kágados, tentámos perceber um pouco mais sobre o funcionamento da mesma.
O que te motivou a juntares-te à República dos Kágados?
Que critérios e processos de seleção são usados para saber se um
estudante pode ou não integrar a república dos Kágados?
Não existe um "processo de selecção" per se.
Nem sequer é obrigatório que uma pessoa seja estudante para viver cá. Há
repúblicas em que é, mas na nossa não. Há só um critério fundamental para uma
pessoa viver cá: saber estar com os Kágados e com a dinâmica dos Kágados, e
vice-versa. Antes de alguém vir viver para cá, geralmente tem um processo de
adaptação à casa em que é comensal. Partilha as refeições, as limpezas, a
festa, as responsabilidades, connosco. Tal e qual como um residente. Só que não
tem um quarto atribuído. Depois de um tempo como comensal, pode considerar
propôr-se a viver cá.
O que pode um estudante esperar da República dos Kágados, em
termos de integração, socialização, apoio, etc, se for aceite para lá morar?
Pode esperar uma comunidade
quase familiar. Este ano a nossa comunidade é mais pequena. Entre comensais e
residentes somos 12, e o ano passado eramos 20. Foi graças aos Kágados que,
quando cheguei a Coimbra em Setembro de 2013, não me senti totalmente
desamparada. O meu processo de integração começou muito antes de vir para cá
viver. Logo à partida toda a gente se disponibilizou a apoiar-me, a convidar-me
para jantar, a ajudar no que precisasse. Sem saberem muito mais que o meu
primeiro nome! A verdade é que ser comensal e residente é diferente. Quando se
vive cá, criam-se laços muito mais estreitos com os outros Kágados. Eu sinto
que, desde que vivo aqui, criei amizades que me vão durar uma vida e que estou
a adquirir estratégias que não conseguiria aprender noutro sítio ou de outra
forma.
Sabemos que que a república dos Kágados é a mais antiga da
cidade e que por lá já passaram várias personalidades marcantes da nossa
história. Por que ideais políticos e princípios se rege esta república?
Somos os mais antigos da cidade, e do mundo!
Acho que o maior princípio por trás da nossa vivência é o da liberdade e do
respeito. Não há um ideal político "institucionalizado". Alguns de
nós nem sequer ligam a política. Mas a verdade é que a casa tem uma tradição
libertária (se é que isto faz sentido...). Passaram por cá o Zeca Afonso, o
Vinnicius de Moraes, o José Mário Branco, entre tantas outras personalidades
importantes na vida académica, cultural e histórica de Portugal. Isto
significa, naturalmente, que há como que uma tradição de esquerda, mas mais do
que falarmos em esquerdas ou direitas, é importante falarmos em liberdade.
Na tua opinião, achas que estes ideais e princípios se têm mantido
ou há necessidade, com o passar do tempo, adaptar e talvez melhorar alguns
deles?
Claro que com o passar do
tempo tudo se modifica. Mudam-se os tempos, mudam-se as gerações, mudam-se as
vontades. A nossa casa já conheceu algumas gerações de residentes algo
complicadas, mas neste momento está tudo em ordem. Há casas, como os Galifões,
que nos anos 80 tinham uma posição política marcada e inalienável e hoje são
totalmente diferentes do que eram há 30 anos. Eu acho que nós não. Continuamos
no nosso vagar, no nosso ritmo, mas sem deixarmos que nos pisem os calos. De
novo, sendo que os maiores princípios por trás da nossa casa são a liberdade e
o respeito, há sempre coisas a melhorar, mas não faz grande sentido que deixem
de ser os nossos princípios fundamentais.
A política anti-praxe está bastante vincada na história das
repúblicas. O que é para ti a praxe e que opinião tens acerca da mesma?
Para mim a praxe é uma
ferramenta do Estado capitalista. Não como o Serviço Nacional de Saúde, que
também é uma ferramenta, mas como eram os Gabinetes de Propaganda nos anos 40.
É violento dizer isto assim, mas eu vejo a praxe como uma forma de ensinar os jovens
a comerem e piarem fininho face à autoridade. Dizem os cães velhos da praxe que
é uma forma de nos "preparar para o mercado de trabalho", mas se o
que nos ensinam é a olharmos para o chão, ou rebolarmos, ou ajoelharmo-nos,
estão a dar-nos as estratégias erradas para o mercado de trabalho. Tudo o que
foi conquistado até hoje foi conquistado pela rebeldia, por se bater o pé, e
dizer não. Se nós mulheres podemos estudar, é porque batemos o pé, porque fomos
rebeldes. Se toda a gente tem direito a estudar e ser alfabetizada, foi porque
houve rebeldia. Se temos direito à greve, é porque os nossos avós e bisavós
foram rebeldes. Porque nos recusámos a olhar para o chão quando nos mandaram.
Se o que nos estão a ensinar é que se fazemos frente à autoridade vamos levar
um castigo (por mais simbólico que seja), é uma aprendizagem que vamos levar
para o futuro, e vamos perder a nossa capacidade de dizer "não".
Também foi a postura anti-praxe da nossa república que me animou a juntar-me a
esta comunidade. Somos anti-praxe desde a crise académica de 69, como muitas
outras repúblicas, e até hoje mantemos essa posição. Uns por motivos
semelhantes aos meus, outros por motivos inteiramente diferentes.
Dentro da república há algum tipo de hierarquia a ser
respeitado? Se sim, de que forma é que isso é feito?
Na nossa casa já não existe
hierarquia há cerca de 15 anos. Tínhamos um Mor, como algumas repúblicas ainda
têm, mas o nosso último Mor fugiu com a última Mor da República Prá-Kys-Tão.
Consta que estão juntos até hoje! Todos temos a mesma importância e o mesmo
peso cá em casa. Seja a comensal que está connosco há um mês e pouco, seja o
residente que está cá há 5 anos. Em decisões colectivas, toda a gente tem
direito a falar e fazer-se ouvir.
Na tua opinião quais são os benefícios e as mais valias que há
em fazer parte de uma república?
São tantos os ganhos... Nem
sei por onde começar. Estou a aprender a viver numa comunidade. Ganhei uma
família nova. A quantidade de gente do mundo todo que já conheci, e as novas
amizades que já fiz... A boémia, as responsabilidades (porque viver numa
República não é alugar um quarto num apartamento), o apoio na faculdade e em
tantos outros aspectos da vida. Para além do aspecto económico, é tudo o que
significa em termos de crescimento pessoal. Não há nenhum contra, no que toca a
viver numa República. E tomara que mais gente tivesse curiosidade em saber como
isto é e o bem que se vive!
Sem comentários:
Enviar um comentário