Uma residência (IN) comum
A chegada em horário inconveniente foi recebida com
alegria. Carlos, morador há dois anos apressou o convite a provarmos o peixe
ainda ao lume, feito por si.
É feriado, e a residência autónoma da Associação Portuguesa para as
Perturbações do Desenvolvimento e Autismo de Coimbra - APPDA na Cruz dos
Morouços, em Coimbra - está mais vazia que é costume. Dos quatro atuais residentes,
encontramos a mesa posta apenas para três. O Hugo e o Pablo foram passar o fim-de-semana
prolongado à casa dos pais. O “cozinheiro” Carlos, o colega Alexandre e a
“vigilante” Graça Lopes, compõem a mesa preparada por eles: “Tanto a disposição
como a comida, eu simplesmente dei indicações”, afirma Graça.
A hora da
refeição
Carlos tem 30 anos, é licenciado em Engenharia Biomédica e não costuma
almoçar em casa. Hoje é dia 25 de Abril, está por cá, mas geralmente almoça nas
cantinas. A demora do autocarro 32 não permite a deslocação diária na pausa,
mas não se importa, já conhece quase todos os funcionários das cantinas sociais
“de nome não, não sou bom a fixar, mas sei todos quem são”.
Trabalha no ICNAS (Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde)
e desempenha várias funções. “Automatizo os programas de meteorologia, ando pelas
matemáticas e acabo por concluir trabalhos de colegas”. E confessa “nunca
trabalhei na Robótica, mas gostava.” Para além do trabalho, o Carlos pratica
natação, todas as terças e quintas-feiras, no Pavilhão Municipal Multidesportos.
“Apanho sozinho o autocarro no trabalho, vou até lá e faço a minha aula. Depois
tomo banho e venho para casa. Tenho de apanhar dois autocarros até aqui”. Admite
que detesta transportes públicos cheios, pois não pode alimentar o único vício
que tem, jogar telemóvel.
Carlos, a
preparar o almoço
Na casa, atualmente está proibido de fomentar a sua obsessão.
Compreende e acha que foi o melhor: “estava a roubar bué tempo, era só jogar e
trabalhar, tava cansado, não falava com ninguém”.
Vive com o Hugo, o Alexandre e as vezes com o Pablo “ele, só vem nos
dias da natação. Tenho algumas saudades que ele esteja aqui sempre. Falamos
bastante. Eu gosto de estar aqui, mas não gosto das regras acho que não é
preciso ninguém mandar em ninguém.”
Carlos já viveu com um grupo de estudantes nos tempos de faculdade,
contudo dessa experiencia não guarda boas recordações. “Fui chamado à atenção,
não lavava nada e os outros precisavam de utilizar, mas podia ir vestido como
queria, ninguém se importava”, e reformula: “eu gosto de estar aqui.”
Na
residência o dia-a-dia funciona de forma diferente. Todos participam havendo
tarefas individuais e de grupo, que se encontram afixadas no quadro da sala de
estar.
Questionada posteriormente sobre
a forma de gestão, a responsável da Residência Tânia Novais explica: “ a gestão da casa é feita por mim e pelas
colaboradoras, ambas ajudantes de ação direta. São elas quem supervisionam e
prestam auxílio às tarefas que os jovens desenvolvem, contudo também realizam
um conjunto de outras atividades normais de uma casa, em que os jovens (ainda)
não colaboram. Curiosamente, o Carlos, que tem inúmeras aptidões ao nível da
programação informática, concebeu um programa que de forma aleatória distribui
os jovens pelas várias tarefas diárias. É ele, quem no fim de cada mês, entrega
a tabela com esta distribuição. Para Tânia, a maior desafio deste projeto
recai exatamente na imposição destas tarefas. “ Numa fase inicial foi a gestão das regras residenciais. Os jovens
traziam hábitos de suas casas, das instituições onde se encontravam integrados
ou os seus próprios hábitos. Foi necessário uniformizar procedimentos.”
Tânia Morais é psicóloga, colaboradora na APPDA e uma das responsáveis
pela Residência Autónoma. Para si a principal barreira entre os residentes e a
sociedade ainda está na forma como o autismo é visto: “a perturbação do Espetro
do Autismo ainda é vista como doença e não é uma doença! Como o nome indica, é uma
perturbação.”
Questionada se essa é a justificação para este projeto acrescenta “sim, também, mas este projeto surgiu
perante a necessidade sentida por um grupo de pais, de verem assegurado o
futuro residencial dos seus filhos. Foi um sonho, tornado realidade, à custa de
muito esforço e dedicação da direção”
Tabela de
tarefas
O almoço está na mesa e Carlos começa a dividir em doses minuciosamente.
Alexandre, o seu colega de casa revela que todas as refeições têm de ser assim
“o Carlos gosta que os pratos estejam todos iguais. É assim, tem de ser”.
O Alexandre tem 21 anos e conheceu-o há um ano e meio, quando veio
para a residência viver.
Ao contrário do seu colega, não anda na faculdade nem faz parte dos
seus planos, contudo também ocupa o seu tempo. “Vou de autocarro todos os dias
para Santo António dos Olivais. Estou a tirar um curso para ser responsável de
armazém.” É o mais jovem e não gosta de falar das suas experiências, admite
contudo que as palavras da vigilante sobre o seu talento para o desenho são
verdadeiras. Com um sorriso envergonhado, expressa “Nunca mais desenhei, não
tenho nada para desenhar. Agora ocupo os meus tempos livres a ver filmes, já vi
quase todos”.
Tal como Carlos a sua tarefa preferida é colocar a mesa. Gosta de
viver na residência, mas adianta “quero ser independente, ter um trabalho, uma
casa e até uma namorada. Mas primeiro quero um trabalho, depois logo vejo”.
Hoje está entusiasmado com a saída, embora preferia outros eventos, o Alexandre
vai com o Carlos ao Estádio Universitário assistir ao Festival de Robótica de
2017.
Alexandre - mostra os
desenhos da sua autoria
A nítida diferença de personalidades, não afeta a relação dos
residentes. Segundo Tânia Novais “são
capazes de estar sentados no sofá a ver TV sem falarem entre eles, mas também
são capazes de estar a fazer legos ou a realizarem exercícios matemáticos em
conjunto e a parabenezirem-se pelos sucessos uns dos outros.” Interpelada sobre
os requisitos para viver na residência responde “é necessário ter 18 anos, ter capacidade mediante apoio de viver
autonomamente, ser portador(a) de uma PNEA (Perturbação do Neuro
desenvolvimento e do Espetro do Autismo) e oriundo da zona centro.”
Quanto aos quatro residentes
atuais, afirma que há “os progressos claramente
notório. Desde os cuidados com a higiene pessoal, em que cada vez menos
necessitam de alertas, à autonomia residencial”, acrescentando, “a primeira vez, em que senti que o objetivo
estava a ser cumprido, foi um dos dias em que fui à sala e vi um dos jovens, de
pijama e pantufas, esticado no sofá”.
Para a Psicóloga, lidar
diariamente com “seres humanos genuínos
que apresentam défices ao nível da comunicação e da interação social, bem como
ao nível do comportamento e interesses” faz com que “o sorriso sincero dos residentes é a melhor obrigada que posso
receber.”
Sofia Tavares é estudante e
vigilante aos fins-de-semana, da Residência Autónoma. Para a Sofia esta
realidade não é novidade, contudo conheceu-a de forma diferente. “O meu irmão tem Síndrome X Frágil. Não é a
mesma coisa, mas tem características. Ele frequenta a APPDA e as atividades como
teatro, música, piscina, etc. Muitas vezes ia deixa-lo e acabei por interagir.
Surgiu o convite, eu decidi aceitar.” Quanto às suas funções, enquanto
trabalhadora, relata “basicamente eu tenho
de orientá-los e certificar-me que as rotinas estão a ser respeitadas. Para
além das refeições, por exemplo, vejo se levantaram-se a hora, se a arrumação
do quarto foi feita, ou até se a barba foi ou é para fazer (risos).”
A refeição acabou, e a cozinha já está arrumada. A timidez inicial desapareceu
e fomos convidados a conhecer o jardim. No jardim há flores e algumas árvores.
Os antigos recantos compostos por relva foram substituídos por pedras da
calçada. Entre sorrisos os residentes confessaram “antes havia muita relva,
tínhamos de regar, cortar, etc. Era muito trabalho e não gostávamos muito, não
temos tempo.”
A conversa foi longa, e a hora do lanche lembrou que era tempo de
despedidas. O “já?” de ambos os habitantes, fez-nos concluir, os bons hábitos
sociais que estão a ser desenvolvido pela APPDA. Um bem-haja.
Joana Jana
Catarina Gomes
Sofia Tavares
Sofia Freitas
Marco Gomes
José Lopes
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