Apesar de
ter uma história de vida conturbada, Luís Adelino Lopes, de 47 anos, deu o seu
testemunho para mostrar um exemplo que não deve ser seguido. Uma história que
evoca a realidade nos seus atalhos mais obscuros e que traz consigo sentimentos
difíceis de gerir.
Em primeiro lugar, conte-me um pouco
acerca da sua infância.
Acho que tive
uma infância normal, vivi até aos 10 em Tomar com os meus pais e mais dois
irmãos. A família estava sempre à frente de tudo e o meu melhor amigo era um
dos meus irmãos. A única pessoa da família com quem eu não me dava muito bem
era com o meu pai. Via o que a minha mãe sofria com ele, mas por ser ele o
único a sustentar a casa, lá tinha ela de engolir os sapos todos!
A partir dos 10 anos, foi viver para
onde?
Fui morar
para Abrantes, o meu pai perdeu o emprego e mudámo-nos porque surgiu outra
oportunidade.
Acha que essa mudança influenciou o
caminho que a sua vida tomou?
Com 10 anos a mudança não me custou muito, por
isso acho que não influenciou em nada as escolhas que fiz. Era aquela idade em
que era muito fácil fazerem-se amizades e, além disso, tinha a minha família e
bastava-me. Sempre me adaptei bem às mudanças e como era uma criança muito
extrovertida e sociável conseguia cativar a atenção e a amizade de todos
facilmente.
Mudou de casa, mudou de escola. Como
era nas aulas?
(risos) Eu
nunca fui muito dedicado aos estudos, mas nunca chumbei nenhum ano… até ao meu décimo
segundo.
O que aconteceu nessa altura?
No meu décimo segundo ano tive de mudar de escola outra
vez, porque os meus pais quiseram mudar para uma casa maior. Fomos para um
bairro que ficava a alguns quarteirões da casa onde estávamos e a escola lá era
frequentada por pessoas totalmente diferentes das que estava habituado. Acabei
por perder contacto com a maior parte dos meus amigos e vi-me obrigado a
integrar-me num grupo que não era nada a minha cara até à altura. Todos
consumiam algum tipo de drogas e quando me comecei a aperceber da situação já
era tarde demais. Já estava no meio do grupo e, caso saísse, ía ser desprezado
pela escola toda porque eles tinham muito poder lá na escola.
Os seus pais alguma vez o alertaram para esse tipo de situações?
Lembro-me muito bem de uma semana depois de ter
começado na escola nova, a minha mãe me ter perguntado se alguém já me tinha
oferecido alguma coisa. A minha expressão foi de completa surpresa porque não
me passava de todo pela cabeça que alguém sequer com a nossa idade o pudesse
fazer. Eu, sinceramente, agora que olho para trás, penso que com 17 anos era
mais inocente do que crianças hoje em dia com 12 anos. Se queres que te seja
sincero, eu lá para os meus 14 anos experimentei uns cigarritos com os meus
colegas, mas como nenhum de nós sabia como fazer, desistimos porque aquilo nos
dava uma tosse horrível.
E mesmo com os avisos que eles lhe deram, decidiu experimentar? Talvez
devido a alguma pressão por parte do grupo?
Eles eram boas pessoas. A certa altura, o meu pai
voltou a perder o emprego e as coisas lá em casa não andavam famosas. Eu via
naquele grupo uma forma de escape da realidade. Lembro-me de uma vez estarmos
todos num café ao lado da escola e um deles se virar e dizer «porque é que não
fumas algo connosco para relaxares?». Aquilo ao início não me pareceu nada boa
ideia, mas eles estavam bem, por isso não devia fazer assim tão mal. Começamos
a fumar uns charrozitos depois do liceu. Íamos para o meio da mata que havia
por trás da nossa escola e lá nos deixávamos ficar durante tardes inteiras e
até os nosso olhos voltarem ao normal para depois irmos para casa.
Então, o Luís começou experimentar esse tipo de coisas porque o
relaxavam e faziam-no afastar dos problemas em casa. Qual foi o ponto de
viragem para começar a consumir substâncias mais fortes e prejudiciais? Foi
também por influência do grupo?
O que fumava no início era praticamente inofensivo, tal
como os problemas em casa. Foi no verão, quando o meu irmão mais chegado
morreu, que a minha vida mudou completamente. Recordo-me de nesse dia, depois
de saber o que tinha acontecido, de ter ido ter com os meus amigos e ter fumado
mais erva do que alguma vez tinha fumado na vida. Nessa altura aconteceu muita
coisa, o meu pai tinha perdido o trabalho e chegava sempre bêbedo a casa, o meu
irmão morreu e, por causa de tudo isso, eu acabei por chumbar o décimo segundo
ano. Foi passados uns meses que comecei a entrar em caminhos mais perigosos.
Caminhos perigosos?
Fui um bocado movido pela curiosidade e pela
necessidade de me fechar do mundo que tinha à minha volta. Foi uma pena não ter
percebido que não enfrentar a realidade só me iria trazer mais problemas.
Comecei a experimentar coisas novas e com efeitos mais fortes, como heroína,
por volta dos 18/19 anos. A partir daí, as drogas dominaram a minha vida por
completo.
Em algum momento se deu conta de que já não havia volta a dar?
Foi um período muito mau. Eu comecei a afastar-me da
minha família e até dos meus amigos. Cheguei a viver na rua e sabia que aquilo
me estava a matar, mas por muito que eu quisesse sair daquele buraco, já não
havia volta a dar e eu sabia isso. Comecei a dar me bem com uns senhores que
tinham um café. Eles todos os dias davam-me o que sobrava dos bolos e do pão e
levavam-me água, mas também não me davam muita confiança. Eu era um sem-abrigo,
não era uma pessoa como eles. Parecia que toda a gente tinha medo de mim e
sinceramente tinham todas as razoes para ter. Eu estava medonho, estava mais
chupado que um palito e tinha uma cara que metia medo ao susto. Chegou a uma
altura em que eu vi a minha mãe chorar dia e noite por minha culpa. Foi aí que
eu decidi que tinha de fazer alguma coisa e tentei deixar-me daquilo.
Mudei de cidade, estive em Viseu cinco anos e durante
esses cinco anos mudei de emprego 11 vezes. Dá para acreditar? 11 vezes.
Trabalhei nas obras, como padeiro, numa loja de ferragens, fui jardineiro… tive
tanta profissão que já nem eu me lembro. Deitei tudo a perder várias vezes por
causa de recaídas e cheguei a viver em condições degradantes. Quando estive
viciado durante todo aquele tempo, mal me lembro das coisas que fazia. Foi um
período horrível e muito desgastante, mas fez parte de mim. Com as drogas, eu
destruí as minhas amizades, as minhas paixões, até a minha família, e ainda
hoje estou a lutar por recuperá-los. A droga dominou literalmente a minha vida,
ensinou-me a mentir, a manipular e levou-me ao caminho de que mais me
envergonho: a roubar. Aliás, o facto de eu ter tido 11 empregos deve-se muito a
isto. Na padaria, por exemplo, só trabalhei duas semanas porque estava a
ressacar por droga e precisava de comprar mais. Roubei na altura 80 contos [hoje
em dia 400 euros] e assim que descobriram que tinha sido eu, fui posto no olho
da rua.
Foi uma recuperação difícil, mas hoje, felizmente, está de boa saúde e
com um emprego. Acredito que haja um momento em que se pense “tem de ser desta,
é agora ou nunca” e que o faça mudar de vida radicalmente e de vez. Qual foi
esse momento, Luís?
Nunca é definitivo, ainda hoje luto por isto. Eu estive
à beira da morte duas vezes e, como à terceira é de vez, decidi que não podia
haver terceira. Tinha eu 29 anos na altura e foi quando conheci a minha atual
esposa. Foi como um anjo que me apareceu na vida. Tinha começado a trabalhar há
pouco tempo como empregado de mesa noutro café lá de Viseu, há cerca de três
semanas, e tinha terminado mais uns tratamentos de desintoxicação. As pessoas
que me deram trabalho foram também impecáveis, foram as únicas que se
conseguiam aproximar de mim sem julgamentos. Confiaram em mim e foi por isso
mesmo que não os desiludi. Trabalhei e esforcei-me para mudar. A droga era um
assunto que estava a começar a ficar tratado. Com 34 anos saí da minha última
sessão de terapia de reabilitação. Casei, trabalho num café com a minha mulher
e hoje tenho um filho que me dá muita alegria, tem 7 anos e quer ser
astronauta. Como é a imaginação das crianças…
Qual é a maior lição que tira de tudo o que viveu?
Se eu não
tivesse batido no fundo do poço nunca saberia o que era a vida. Não foi uma
fase bonita da minha vida, mas fez de mim a pessoa que sou hoje. Só quem passa
por algo assim é que sabe a força que é precisa para ultrapassarmos isto e
lutarmos até contra nós próprios. Nós somos os nossos melhores amigos, mas ao
mesmo tempo os nossos piores inimigos… E um vício é um vício. Hoje em dia, os
pais não têm noção das coisas a que os filhos estão sujeitos todos os dias. Nunca
vou deixar que o meu filho perca o controlo da mesma maneira que eu perdi. Não
tenho orgulho naquilo que fui há muitos anos atrás, mas tenho orgulho na
batalha que eu ganhei. A solução é contornar os problemas e não fugir deles.
Mas, mais importante que tudo isso, temos de saber pedir ajuda. Sozinho, teria
sido impossível.
Disse que ainda hoje luta por uma vida diferente. Continua em
reabilitação?
Quando saímos de um vício, quer seja álcool, drogas ou
outra coisa qualquer, ele fica sempre nas nossas vidas, quer queiramos quer não,
e há sempre a possibilidade de haver uma recaída. É preciso continuar a tratar,
mais do que as físicas, as marcas psicológicas. Por isso, eu participo em
algumas reuniões em que estão presentes alguns ex-viciados e todos os dias
partilhamos experiências novas, porque todos os dias, sobretudo no início do
tratamento de desintoxicação, se vencem novas batalhas. Por muito pequenas que
sejam, são fundamentais. É bom sentirmos que alguém passou pelo mesmo que nós e
que valoriza as nossas pequenas vitórias. E eu preciso de continuar a ouvir
essas histórias para nunca me esquecer que não posso voltar a passar por elas.
Catarina Elias
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