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sábado, 27 de maio de 2017

“As marcas ficam cá para toda a vida”
Cerca de um milhão e meio de soldados portugueses estiveram envolvidos na guerra do Ultramar.

Passados 56 anos do início da guerra do Ultramar são muitas as memórias e pesadelos que ainda assombram a vida de quem foi obrigado a participar numa guerra que não considerava sua. Lúcio Costa, do regimento da infantaria 1 da Amadora, foi destacado para a província ultramarina de Angola. Hoje, com 76 anos, conta-nos o que passou em solo angolano e a emoção que não conseguiu conter.

Em que ano foi destacado para a guerra do Ultramar?
Estava na Amadora há dois meses na recruta quando a chacina à população branca começou em Angola. Só estávamos para ir para Luanda em 1962, mas como a guerra “explodiu” o comandante ofereceu a nossa companhia. Eramos a Quinta Companhia de Caçadores Especiais, e fomos obrigados a ir em 1961, ainda sem qualquer experiência.

Teve a oportunidade de se despedir de quem mais gostava?
Como fomos das primeiras companhias a ir, recebemos as fardas numa tarde e ao outro dia de manhã apanhamos logo o avião. Muitos militares não quiseram, mas eu ainda vim a casa. Tive de me despedir dos meus pais, até porque não sabia se era a ultima vez que os via.
Lúcio Costa, Angola 1962

Percebia as razões deste combate ao serviço de Portugal?
Eu sabia que ia para uma guerra, mas não fazia ideia do que ia encontrar. Estávamos a ir para o
desconhecido, deixando o nosso país para trás. Praticamente íamos de olhos “vendados”.

Já tinha tocado em armas?
Nunca tinha tocado em armas. Mas ali era preciso, apesar da experiência ser nula tínhamos de nos defender. Ao início usávamos uma espécie de espingarda. Só para o fim é que nos deram as automáticas.

Tinha noção de que o risco de vida era grande.
Sim, claro. Mas as forças rebeldes da UPA tinham estratégias que fomos conhecendo. Por exemplo, quando víamos uma árvore caída no chão a tapar um caminho já sabíamos que ali estavam eles à nossa espera. Prontos para nos matar assim que descêssemos do jipe. Como já sabíamos metralhávamos aquela zona toda, não podíamos correr esse risco.

O que é que ainda hoje o emociona?
Daquilo que vi o que mais me emociona foi um episódio que vivi na fazenda Nunes, nos arredores de Quitexe. Ao chegar a este local a primeira coisa que vi foi num berço, um bebé completamente mutilado. Isto deita qualquer um abaixo. Passados já tantos anos são imagens que ainda estão muito presentes na minha cabeça. Foi das piores coisas que vi. 

Além deste, houve mais algum episódio que o tenha marcado?
Chegamos a uma serração noutra fazenda, onde encontramos sete corpos chacinados. Ali tinham agarrado nas pernas dos meninos mais pequenos e batiam com eles na parede, foi assim que os mataram. Fizeram as maiores atrocidades àquelas pessoas e crianças inocentes.
Lúcio Costa com um colega

Como foi ver os seus colegas morrer?
Não foram muitos. Só vi dois colegas meus falecerem. Um deles porque o carro de combate que conduzia se virou e ele teve o azar de ficar lá de baixo. O outro também por acidente. Um dos sargentos levava uma arma FBP e num segundo aquilo disparou. O meu colega estava na frente e foi atingido.

Conseguia dormir?

Muito pouco. Quem é que não tinha medo? Todos tínhamos. Durante a noite era ainda pior. Quando conseguíamos dormir era no chão. Fazíamos turnos. Uns descansavam, enquanto os outros ficavam de vigia. Não podíamos estar descansados porque a qualquer momento podíamos ser atacados. A minha “melhor amiga” era a espingarda. Dormia com ela, caso houvesse alguma coisa de repente estava pronto a disparar.


Como conseguiu gerir as emoções no meio de algo tão atroz?
Não foi fácil. Chorei muitas vezes. Tinha saudades de casa e do meu país. Mas principalmente por tudo aquilo que se passava em Angola e o que eu via.

Eram bem alimentados?  
Quando íamos para o mato comíamos ração de combate. Latas de atum ou sardinha, bolachas de água e sal, não tínhamos muito mais. Para “matar” a sede, muitas vezes, bebíamos a água das poças sujas. Não havia mais nada e a sede era muita.

Os últimos meses continuaram assim atribulados?
Não. Regressei em 1963 e os últimos meses já eram muito mais calmos. Já não passávamos fome, por exemplo, comíamos santola e lagosta. As pessoas de lá tratavam-nos como se fossemos da família.

Como reagiu no dia em que anunciaram o regresso a Portugal?
Foi uma alegria muito grande quando nos disseram que podíamos regressar a casa, ao nosso país. Eu só queria vir embora.

Veio um homem diferente?
Depois de tudo o que vivi naquelas fazendas, tornei-me um homem diferente. Quando regressei a Portugal estava muito revoltado e agressivo. Tudo era razão para agir com violência. Aos poucos fui acalmando e, hoje em dia, controlo-me muito melhor, mas as marcas ficam cá para toda a vida.
maio, 2017
Os traumas ainda estão presentes?
Estive em Angola durante dois anos e seis meses. Não dá para simplesmente apagar da memória um período tão marcante que vivenciei. Ainda hoje adormeço e acordo com pesadelos, como se ainda lá estivesse. Não é fácil lidar com as coisas que vimos.
               
                 
                                                                                                                Ana Margarida Costa
                                                                                                               Atelier de Cibercultura

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