“As marcas
ficam cá para toda a vida”
Cerca de um milhão e meio de soldados portugueses estiveram envolvidos na guerra do Ultramar.
Cerca de um milhão e meio de soldados portugueses estiveram envolvidos na guerra do Ultramar.
Em que ano foi destacado para a guerra do Ultramar?
Estava na
Amadora há dois meses na recruta quando a chacina à população branca começou em
Angola. Só estávamos para ir para Luanda em 1962, mas como a guerra “explodiu”
o comandante ofereceu a nossa companhia. Eramos a Quinta Companhia de Caçadores
Especiais, e fomos obrigados a ir em 1961, ainda sem qualquer experiência.
Teve a oportunidade de se despedir de quem mais gostava?
Como fomos das primeiras companhias a ir, recebemos as fardas numa tarde e ao outro dia de
manhã apanhamos logo o avião. Muitos militares não quiseram, mas eu ainda vim a
casa. Tive de me despedir dos meus pais, até porque não sabia se era a ultima
vez que os via.
Lúcio Costa, Angola 1962 |
Percebia as razões deste combate ao serviço de Portugal?
Eu sabia que ia para uma guerra, mas não fazia ideia do que ia encontrar. Estávamos a ir para o
desconhecido, deixando o nosso país para trás. Praticamente íamos de olhos “vendados”.
Já tinha tocado em armas?
Nunca tinha
tocado em armas. Mas ali era preciso, apesar da experiência ser nula tínhamos
de nos defender. Ao início usávamos uma espécie de espingarda. Só para o fim é
que nos deram as automáticas.
Tinha noção de que o risco de vida era grande.
Sim, claro.
Mas as forças rebeldes da UPA tinham estratégias que fomos conhecendo. Por
exemplo, quando víamos uma árvore caída no chão a tapar um caminho já sabíamos
que ali estavam eles à nossa espera. Prontos para nos matar assim que descêssemos
do jipe. Como já sabíamos metralhávamos aquela zona toda, não podíamos correr
esse risco.
O que é que ainda hoje o emociona?
Daquilo que
vi o que mais me emociona foi um episódio que vivi na fazenda Nunes, nos
arredores de Quitexe. Ao chegar a este local a primeira coisa que vi foi num
berço, um bebé completamente mutilado. Isto deita qualquer um abaixo. Passados
já tantos anos são imagens que ainda estão muito presentes na minha cabeça. Foi
das piores coisas que vi.
Além deste, houve mais algum episódio que o tenha marcado?
Chegamos a
uma serração noutra fazenda, onde encontramos sete corpos chacinados. Ali
tinham agarrado nas pernas dos meninos mais pequenos e batiam com eles na
parede, foi assim que os mataram. Fizeram as maiores atrocidades àquelas
pessoas e crianças inocentes.
Lúcio Costa com um colega |
Como foi ver os seus colegas morrer?
Não foram
muitos. Só vi dois colegas meus falecerem. Um deles porque o carro de combate
que conduzia se virou e ele teve o azar de ficar lá de baixo. O outro também
por acidente. Um dos sargentos levava uma arma FBP e num segundo aquilo
disparou. O meu colega estava na frente e foi atingido.
Conseguia dormir?
Muito pouco. Quem é que não tinha medo? Todos tínhamos. Durante a noite era ainda pior. Quando conseguíamos dormir era no chão. Fazíamos turnos. Uns descansavam, enquanto os outros ficavam de vigia. Não podíamos estar descansados porque a qualquer momento podíamos ser atacados. A minha “melhor amiga” era a espingarda. Dormia com ela, caso houvesse alguma coisa de repente estava pronto a disparar.
Como conseguiu gerir as emoções no
meio de algo tão atroz?
Não foi
fácil. Chorei muitas vezes. Tinha saudades de casa e do meu país. Mas
principalmente por tudo aquilo que se passava em Angola e o que eu via.
Eram bem alimentados?
Quando íamos
para o mato comíamos ração de combate. Latas de atum ou sardinha, bolachas de
água e sal, não tínhamos muito mais. Para “matar” a sede, muitas vezes,
bebíamos a água das poças sujas. Não havia mais nada e a sede era muita.
Os últimos meses continuaram assim atribulados?
Não. Regressei
em 1963 e os últimos meses já eram muito mais calmos. Já não passávamos fome,
por exemplo, comíamos santola e lagosta. As pessoas de lá tratavam-nos como se
fossemos da família.
Como reagiu no dia em que anunciaram o regresso a Portugal?
Foi uma
alegria muito grande quando nos disseram que podíamos regressar a casa, ao
nosso país. Eu só queria vir embora.
Veio um homem diferente?
Depois de
tudo o que vivi naquelas fazendas, tornei-me um homem diferente. Quando
regressei a Portugal estava muito revoltado e agressivo. Tudo era razão para
agir com violência. Aos poucos fui acalmando e, hoje em dia, controlo-me muito
melhor, mas as marcas ficam cá para toda a vida.
maio, 2017 |
Os traumas ainda estão presentes?
Estive em
Angola durante dois anos e seis meses. Não dá para simplesmente apagar da
memória um período tão marcante que vivenciei. Ainda hoje adormeço e acordo com
pesadelos, como se ainda lá estivesse. Não é fácil lidar com as coisas que
vimos.
Ana Margarida Costa
Atelier de Cibercultura
Sem comentários:
Enviar um comentário