O professor Hugo Sarmento responde
Entrevista a Hugo Sarmento: “Se as metodologias forem as adequadas, podem tornar-se resilientes, trabalhadores focados, com objectivos e cumpridores. As mesmas normas para jogadores diferentes têm resultados diferentes.”
Hugo Sarmento foi treinador e atualmente é investigador e professor na Faculdade de Ciências do Desporto (FCDEF) da Universidade de Coimbra (UC), onde a entrevista teve lugar. Foi possível perceber a enorme movimentação de alunos e desportistas.
É licenciado em Ciências do Desporto e Educação Física pela Universidade de Coimbra. Mestre em Treino de Alto Rendimento pela Universidade do Porto e doutor em Ciências do Desporto pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Possui um pós-doutoramento em Ciências do Desporto pela Faculdade de Motricidade Humana.
Exerceu o cargo de professor durante anos, no ensino secundário e no ensino superior. Dentro do ensino superior, trabalhou no Instituto Politécnico de Viseu e no Instituto Superior da Maia.
No mundo do futebol foi treinador do campeonato nacional de seniores de vários clubes da região de Coimbra e ocupou durante quatro anos o cargo de treinador na Academia do Sporting em escalões sub-10 e sub-13.
A entrevista foi realizada no âmbito de uma reportagem para unidade curricular Jornalismo Digital, do segundo ano do curso de Comunicação Social (reportagem aqui: https://goo.gl/VOIkUd).
Ao longo da entrevista procurei desmistificar de que forma o futebol contribui para o desenvolvimento das crianças, perceber qual o comportamento que os pais adotam e quais as suas consequências.
O futebol pode influenciar o desenvolvimento da personalidade das crianças?
Pode, como qualquer outra atividade do dia a dia. Até que ponto isso se pode mensurar é mais difícil de identificar e de tornar objetivo. Pode influenciar de várias formas, positiva ou negativamente. Se as metodologias forem as adequadas, podem tornar-se resilientes, trabalhadores focados, com objetivos e cumpridores. As mesmas normas para jogadores diferentes têm resultados diferentes. Há aspetos da personalidade deles que são intrínsecos e que não são moldáveis assim tão facilmente. E se o suporte parental não for adequado é um problema.
Que ensinamentos/ práticas devem ser inseridas para os fazer evoluir enquanto seres humanos?
Há todo um conjunto de saberes e que tem a ver com princípios, normas, regras, que devem seguir e que é um dos principais suportes que o futebol pode dar a estas crianças. No entanto, existe um mundo de possibilidades que se encerram neste jogo desportivo coletivo. Mas depende muito da capacidade do treinador, do grupo de jogadores e dos pais.
Quais as diferenças entre treinar um adulto e treinar uma criança?
Em termos de metodologia de treino é completamente diferente. Existem fases sensíveis para desenvolver algumas das capacidades, nomeadamente a força, a resistência, a agilidade, a velocidade. Todas essas capacidades têm períodos sensíveis de desenvolvimento e necessitam de ser incrementadas nos mesmos. Portanto, há uma necessidade completamente diferente em relação aos adultos. Mesmo na forma como se lida com eles, como se fala com eles, como se planifica o treino para o tornar mais motivador. Isto acaba por ser muito diferente, se não leva a que eles abandonem a atividade desportiva. Nos seniores temos os seniores de rendimento, os seniores amadores e é muito diferente a abordagem no treino em função dessas especificidades.
Quais os cuidados a ter quando se lida com crianças no desporto?
Há intensidades de treino que são completamente diferentes. Há uma forma de comunicar diferente. Com jovens tem de se comunicar de uma forma muito mais próxima, tem de se ser mais tolerante, cativante, porque o objetivo não é só incrementar o rendimento, embora nas academias o objetivo seja cada vez mais o rendimento. É a cima de tudo preparar o ser humano para a prática da atividade. E antes de qualquer tipo de rendimento, há que desenvolver o gosto pela prática da atividade física, que é isso que os torna adultos saudáveis, vão eles mais tarde pelo caminho do futebol ou não.
De que forma reagem as crianças às motivações (expetativas) criadas pelos treinadores e pelo desporto em si?
Há que ter cuidado com o nível dos nossos atletas. Se temos expetativas muito altas e eles não conseguem cumprir, isso pode levar a que eles abandonem a prática e proporcionar sentimentos de inferioridade perante os colegas, afetando-os negativamente. Mas isso é um aspeto que o treinador tem de dominar e saber gerir muito bem para perceber até que ponto os jogadores podem chegar.
De que forma o futebol, pelo reconhecimento e dimensão que tem, pode ajudar a combater o sedentarismo, a falta de autonomia dada pelos pais às crianças, entre outros problemas?
O futebol é uma modalidade que pela expressão que tem a nível mundial cativa as crianças para a sua prática. Ao estarem envolvidos neste contexto de equipa em que os pais não entram, pelo menos no balneário não entram. Em contexto de jogo e de treino entram cada vez mais, infelizmente. Mas o facto de eles estarem envolvidos no seio desta dinâmica permite que eles se tornem mais autónomos, que tomem decisões próprias, que se insiram na dinâmica de grupo e naturalmente a autonomia deles é favorecida. E em todas as viagens que vão jogar fora, para o estrangeiro, eles não têm o domínio dos pais e isso acaba por ser muito bom para eles se tornarem cada vez mais autónomos.
A presença dos pais em jogos e treinos é importante para as crianças?
É. Se for uma presença regular e moderada acaba por ser benéfica. Por isso é conveniente que os pais acompanhem os filhos na prática desportiva. A presença dos pais é importante. Só será má quando eles adotam comportamentos inapropriados e começam a pressionar os filhos, a questionar as decisões dos treinadores e a qualidade dos colegas. Isso faz com que os atletas tenham grandes problemas.
Por exemplo, quando eu tava no Sporting tínhamos um atleta, na altura com 11 anos, foi dos melhores jogadores que eu vi em toda a minha vida! Era um jogador fantástico! Só que tinha um problema, treinava bem durante a semana (os pais não eram de lá e não podiam assistir) e a semana corria sempre bem. Ao domingo o pai ia ver o jogo, enquanto jogo corria bem não havia problema. Ao primeiro passo que ele falhasse, a primeira falta que fizesse e era desnecessária, ele começava a olhar para o pai, que tinha sido também jogador de futebol e começava a chorar e eu tinha de o tirar do campo. E ele não deu jogador de futebol, está agora num clube de menor dimensão, amador, mas tinha todo um potencial para ser um grande craque.
Por exemplo, quando eu tava no Sporting tínhamos um atleta, na altura com 11 anos, foi dos melhores jogadores que eu vi em toda a minha vida! Era um jogador fantástico! Só que tinha um problema, treinava bem durante a semana (os pais não eram de lá e não podiam assistir) e a semana corria sempre bem. Ao domingo o pai ia ver o jogo, enquanto jogo corria bem não havia problema. Ao primeiro passo que ele falhasse, a primeira falta que fizesse e era desnecessária, ele começava a olhar para o pai, que tinha sido também jogador de futebol e começava a chorar e eu tinha de o tirar do campo. E ele não deu jogador de futebol, está agora num clube de menor dimensão, amador, mas tinha todo um potencial para ser um grande craque.
De que forma o comportamento dos pais influencia (positiva ou negativamente) as crianças?
Qualquer comportamento negativo (pais a chamar nomes aos árbitros, a criticar os colegas, os adversários, a prestação do próprio filho e a dar continuamente indicações aos jogadores) cria-lhes transtorno e baralha-lhes a ideia de quem são os seus adultos de referência nos vários contextos.
Os comportamentos dos pais em jogos de futebol dos filhos têm sido alvo das atenções públicas pela negatividade que apresentam. Porque é que estes pais adotam este tipo de comportamentos?
Muitas vezes eles tentam projetar nos filhos aquilo que eles não foram e gostavam que os filhos fossem. Jogadores de excelência ou que atingissem determinado nível competitivo; que eles próprios não atingiram. Ou seja, projetam a sua sombra nos filhos e ao verem que os filhos não estão a conseguir esse objetivo, de certa forma, descarregam as suas frustrações nesse contexto. Outras vezes são mal educados e não conseguem ter a perceção disso.
O que precisam os pais dos atletas mais novos saber para que sejam adotados comportamentos mais corretos?
Eu acho que os pais sabem as consequências que os seus comportamentos podem ter nos miúdos. Não lhes dão é a devida importância. Quando um pai adota comportamentos negativos percebe que aquilo não está a ser positivo. Acho que é mais um caso de inconsciência.
Que papel devem desempenhar os pais?
O papel dos pais é um papel de suporte, de presença. Claro que estar num jogo, não digo que os pais tenham de ir a todos os treinos ou jogos, mas é óbvio que os filhos gostam que os pais vão, que assistam, que apoiem a sua equipa e que os apoiem. Um pai não tem de estar sempre a dizer a um filho que ele jogou bem, quando ele jogou mal. O filho também percebe isso. Agora, se o pai lhe fizer uma perspetiva correta de qual foi o seu desempenho, focando-se sempre que, mais do que a performance desportiva, o importante é ele praticar desporto, respeitar os colegas, os adversários, o árbitro e o treinador. Qualquer criança nesta situação, sente-se motivada para continuar porque sente confiança dos pais. Um pai que diga sempre ao filho que ele jogou muito bem, que foi o melhor, o filho percebe claramente que aquilo é mentira e não valoriza essas declarações.
Quais as consequências para os filhos de pais que adotam comportamentos incorretos na bancada?
Depende. Mas de uma forma genérica, se as crianças sentem o comportamento incorreto dos pais, elas podem ficar apreensivas perante a sua equipa. Podem sentir-se desmotivadas ou até mesmo abandonar a prática. Uma criança que não se sente confortável com o comportamento do seu pai na bancada não gosta de estar naquele contexto e pode não querer jogar.
O que deve ser feito para reduzir estes comportamentos em termos regionais e nacionais?
Eu acho que tem sido feito cada vez mais e há clubes a terem esse tipo de preocupações. Realizando palestras para os pais. A própria comunicação social tem dado um ênfase que ajuda a consciencializar sobre esta realidade. O caminho a percorrer deve ser o de formar os pais para o papel que eles têm. E isto cabe não só aos clubes como é uma questão de cultura geral. Algumas das estratégias que se adotam quando se percebe que alguns pais são muito interventivos no treino e o prejudicam são organizar jogos , aulas e contratar alguém para andar à volta do campo, durante os treinos e jogos, para falar com os pais e assim evitar que estes destabilizem.
O que tem a dizer acerca da escolha por parte dos pais dos desportos para os seus filhos?
A escolha do desporto muitas vezes também reflete o estatuto social dos pais. Cada vez mais há uma tendência para não colocar os filhos em desportos coletivos e coloca-los em desportos elitistas (ténis, judo…). Mas devem ser os miúdos a escolher a prática desportiva que querem e na qual se sentem bem e felizes. O facto de os pais colocarem os filhos numa modalidade para que possam experimentar não é mau, desde que, no momento em que as crianças percebem o que gostam, lhes seja dada a liberdade de escolha. Porque ninguém fica numa modalidade obrigado e isso levará ao abandono.
Trabalho realizado por:
Rute Cunha
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