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terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O céu por cima de suas cabeças


Uma casa chamada Coimbra

Quando em 2001 Joana Nogueira, técnica da acção social, saiu para as ruas de Coimbra junto com a primeira equipa de rua para apoio directo ao sem-abrigo, deparou-se com uma realidade que não era a que percepcionara até então. Não sabia onde paravam durante o dia ou onde permaneciam à noite. Mas os condutores dos veículos dos SMTUC (Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de Coimbra) sim. Foram eles, aparentemente desligados dos pobres em situação extrema- a população sem-abrigo- que mostraram aos técnicos e voluntários os pontos centrais de Coimbra, onde estas pessoas se refugiavam, fizesse chuva ou sol: o conhecido pátio das Químicas, a fachada do centro comercial Avenida, a baixa da cidade, a avenida Fernão Magalhães, fábricas e casas abandonadas.
Algumas de passagem, outras refugiadas em fábricas e casas abandonadas e ainda as que se encontram nos sítios do costume ou em abrigos providenciados, são cerca de 600 as pessoas que fazem de Coimbra e de suas ruas a sua morada e seu espaço de vivências. Cada uma delas tem uma história para contar, sendo certo que nenhuma será igual a qualquer outra. Existem muitas razões para se chegar à condição de sem-abrigo. Tentar enumerá-las é impossível. Interessa sim perceber cada indivíduo e pouco se apoiar nos números, ainda quem exista uma base de dados ao abrigo da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo.
Desemprego de longa duração, divórcio, sobre-endividamento, dependência de drogas e álcool são apenas algumas das causas que levam as pessoas à exclusão social. Em Coimbra, a maior parte da população sem-abrigo é masculina, com doenças psíquicas e com quadros de dependência de álcool e drogas. A população feminina tem vindo a aumentar exponencialmente, motivada pela toxicodependência, prostituição e outras condutas desviantes.

Nem anjos, nem demónios
As pessoas em situação de pobreza, em geral, quando procuram ajuda, querem uma vida melhor. Com os sem-abrigo, que estão na fase extrema da exclusão social, há diferenças entre objectivos e etapas a seguir.
Chamar uma pessoa sem-abrigo de malandra, e rotulá-la, é demasiado fácil. Existem sem-abrigos com problemas e doenças crónicas que não têm capacidade, a nível mental, para perceberem que a sua vida possa ser alterada. 
 É certo que, ingenuidade à parte, existem mesmo aqueles a quem simplesmente não apetece trabalhar  e que, portanto, não conseguem autonomia para se tornarem cidadãos activos na sociedade.  “Quando um sem abrigo faz as pazes com o presente, é difícil tirá-lo da rua. Quando sabe viver naquela situação, quando já não o incomoda”, clarifica o Dr. Paulo, Pereira, responsável pelo Centro Porta Amiga, da Ajuda Médica Internacional (AMI). A esta vontade de não trabalhar alia-se, por vezes, o medo de entrar num sistema que lhes impõe horas, regras, deveres e outras obrigações a que já não estão habituados.
Mas cada caso é um caso e o lugar-comum assim aplica-se. Para “Duarte”, sem-abrigo, a melhor coisa que lhe podem oferecer é um trabalho. Fala com orgulho dos tempos em que trabalhava na manutenção de jardins  e zonas verdes. Depois de uma situação de divórcio, perdeu o seu emprego e com isso, a vontade de continuar. Como acontece demasiadas vezes a demasiadas pessoas, encontrou no álcool o refúgio para a sua frustração. Quando a sua assistente social propôs que se reformasse por invalidez, foi a pior coisa que lhe podia ter dito.
São a histórias como estas que a Joana Nogueira tem acesso todos os dias e que permitem entender que pouco interessa saber números, ainda que sejam indicadores importantes. Interessa mais saber o que reflectem. As respostas formais e técnicas, que existem estão, na sua opinião, muito massificadas e não se adequam a todas as pessoas que vivem na rua ou que, sem alojamento próprio, estão em abrigos temporários, e acabam por limitar os esforços daqueles que se interessam e fazem desta causa o seu trabalho diário.

“Sofia”, de 19 anos, após sair do sistema institucional onde cresceu encontrou vários medos. Não medo de estar agora só, autónoma, ou de sair de uma realidade que até então tinha sido a sua, os abrigos temporários. A sua assistente social, que geriu o seu caso e pretendia ajudá-la a a inserir-se como cidadã plena, estabeleceu-lhe várias tarefas: actualizar a sua identificação, fazer um currículo, ir ao centro de emprego inscrever-se, e outros passos a dar para tornar-se uma pessoa activa na sociedade.  Joana Nogueira, falando com “Sofia”, perguntou-lhe o que sentia sobre as tarefas listadas numa folha de papel. Respondeu-lhe: “Medo”.
          O processo de inserção de uma pessoa na sociedade, ainda que estudado e formalizado, perante as alterações sociais constantes apresenta-se demasiado acostumado ao pobre tradicional. Existe, de facto, aquelas pessoas que nasceram pobres, cresceram da mesma maneira e que não conseguem imaginar o que será não passar dificuldades incompreensíveis para a maioria de nós. Mas, desde 2001, há uma nova tipologia de pobre: pessoas que perderam o emprego ou estavam endividadas, e que de repente viram-se sem casa e à mercê da ajuda das instituições de solidariedade social. É mais fácil ajudar e reintegrar estas pessoas, já que cresceram e vivenciaram o sistema.

A relva do vizinho já não é tão verde quanto antes
 As duas maiores doenças da sociedade são, na opinião do Dr. Paulo Pereira, a intolerância e a indiferença. Contudo, esta realidade está a tocar e a mexer com pessoas com quem antes não mexia. Já vêm o problema dos pobres, não como problema da segurança social, mas como um possível futuro problema seu e do seu vizinho. E isso faz com que se preocupem e se alarmem. É um dos frutos da incontestável crise em que vivemos, que, imagine-se, passa ao lado das pessoas que são o habitual paradigma da pobreza e da sua reprodução (pessoas que nasceram pobres, pessoas cujos pais já eram pobres, pessoas que sempre se conheceram como pobres), que está a assumir novos moldes. Como diz o responsável pelo Centro Porta Amiga, “os pobres não falam da crise porque estão igualmente pobres agora em comparação com há 2 ou 3 anos atrás. Podem ter mudado de vão de escada para dormir. Os verdadeiramente pobres se calhar nem ouvem falar da crise. Estão exactamente iguais.”

Existe um grupo formal, de instituições de solidariedade social, operacional desde 2004,  que  trabalha de forma apertada e, com uma circulação de informação que permite um funcionamento integrado e eficiente desta acção conjunta, que pretende agir em três áreas: prevenção, intervenção e erradicação da condição sem-abrigo.
No que diz respeito a apoios, ainda que cidade de dimensão pequena, Coimbra está bem equipada com respostas e ferramentas sociais.
No que diz respeito à solidariedade social e à AMI, o Dr. Paulo Pereira acredita que “não há, com o passar dos anos mais portugueses solidários. Os que apoiam é que o fazem cada vez mais, porque confiam no trabalho da AMI em prol de um objectivo que é a sua missão”. Os donativos e o número de voluntários aumenta sempre, desde há 27 anos. Todos os anos, a sociedade civil é o maior doador de fundos da AMI e o seu peditório anual regista valores mais altos todos os anos, ainda que preveja que este ano os valores poderão contrariar a tendência.

Quando se despe a camisa pelos que não têm uma
 Se enquanto profissional da acção social Joana Nogueira sente-se limitada pelas suas tarefas,  como voluntária consegue chegar melhor às pessoas que fazem da rua a sua casa, conhecer e perceber todo o universo de situações que as levaram àquela condição. Já o Dr. Paulo fala em ter “independência técnica” que pressupõe  a capacidade de desligar, ainda que seja impossível se preocupar com as pessoas desalojadas e com carências sociais apenas das 9h às 17h. Sem saberem como se despir da sua condição de técnico da acção social, muitas pessoas perdem a capacidade de apoiar as pessoas carenciadas precisamente por se deixarem envolver nas suas histórias e problemas.

Para Coimbra, com amor
       Faissal, “xiita” iraquiano, já não se sente capaz de deixar Coimbra, onde é sem-abrigo desde 1999.
        Conta a vez em que comprou um bilhete de autocarro para ir visitar uma amiga a São Tiago de Compostela e, sentindo saudades mesmo antes de ter partido, rasgou o bilhete e deixou-se ficar.
Sente-se bem apoiado pelas estruturas e pessoas que o suportam. “Eu não tenho nada mas tenho apoio vosso, e a minha força. Também tenho as minhas mágoas lá dentro”, e acredita que um dia vai conseguir superar a sua situação. Entretanto, apoia-se em instituições e amigos que fez em Coimbra, com o passar dos anos, e na sua crença de que apesar de sem-abrigo, está melhor assim do que em Bagdade, onde viver debaixo de fogo é bem pior que viver debaixo de céu.  



                                                                                                                             Cristina Freitas

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