Páginas

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

“Ainda por cima não era casada”

Maria Leonor, há 16 anos reformada, foi, em 1958, uma das primeiras alunas a pisar o novo edifício do antigo Magistério Primário (actualmente a Escola Superior de Educação de Coimbra).
Em entrevista, esta antiga professora primária assume que não teve um percurso fácil enquanto aluna do Magistério, em tempos em que o ensino era bastante mais exigente para com estes profissionais que eram considerados um “prolongamento” dos cuidados maternais.

Posts de Pescada: Porque se quis tornar professora primária?
Maria Leonor: Desde que me lembro, sempre adorei crianças e sempre gostei de transmitir algum tipo de ensinamentos, por muito básicos que fossem. No meu tempo de “garota”, lembro-me de ficar muito atenta ao ensino das minhas professoras durante as aulas, sonhando que, um dia, seria eu a ocupar esse lugar.

PP: Assim que ingressou no Magistério Primário de Coimbra, o curso correspondeu logo às suas expectativas?
ML: Apesar de achar que iria, de facto, gostar do curso pois tinha sido sempre o meu objectivo desde nova, os primeiros tempos foram de difícil adaptação. Vinha de uma
família muito pobre, levantava-me muito cedo para ir até Coimbra e chegava sempre tardíssimo porque o autocarro era, naquele tempo, o único meio de transporte que tinha para ir até à cidade. Isso deixava-me com muito pouco tempo de estudo (até porque, quando chegava a casa tinha sempre uma família para ajudar) mas, com a minha força de vontade e determinação sempre consegui orientar os meus estudos. Além disso, no Magistério a preparação para uma profissão que era a base da educação das crianças trazia desvantagens: controlavam sempre como andávamos vestidas – tínhamos de andar sempre de bata branca e de saia e, se não usássemos meias, éramos repreendidas.

PP: Enquanto aluna, como foi o seu percurso?
ML: O meu caso foi muito peculiar. Comecei por fazer um exame de admissão à escola do Magistério Primário no final do meu 5º ano (actual 9º ano de escolaridade) e consegui logo ingressar. O primeiro ano, apesar de uma adaptação um tanto ou quanto complicada, correu sem grandes problemas. Fiz e completei tudo o que devia com notas minimamente razoáveis.
Os problemas vieram depois. Aos dezassete anos, no meu segundo ano, engravidei do meu único filho. Durante uns tempos consegui manter a gravidez em segredo (tinha de fazê-lo porque o ensino era bastante discriminatório com as mulheres) mas quando fui fazer os exames que se realizavam antes do estágio, senti-me mal e não consegui sequer responder a uma pergunta. Com isto, a professora que me estava a examinar descobriu a minha situação e ficou bastante desconfortável com o meu “estado” pois, na altura, este caso era muito mal visto – não só pelo facto de carregar um filho dentro de mim, mas também porque ainda por cima não era casada.
Mesmo assim nunca imaginei que, quando fosse ver as minhas notas finais, estivesse escrito, logo após o meu nome, um DESISTIU a vermelho. Eu não tinha desistido, fui sim “convidada a desistir”. Não percebi porque é que isto aconteceu. Mais tarde, em conversa com colegas, soube que a razão para esta situação se desenrolar estava relacionada com o facto de que se fosse reprovada, não podia jamais terminar o curso. Assim, deram-me uma chance de o fazer um ano mais tarde.
Foi uma situação muito complexa, nunca pensei que fosse passar por isto, tinha tudo programado para acabar o curso dentro do tempo que era suposto. Fiquei bastante em baixo nessa altura até porque fui a primeira aluna a reprovar naquelas instalações. Mas depois tudo se compôs, fiz o que tinha a fazer, finalizei o curso e fiz um estágio de três meses. Mais tarde, comecei a trabalhar, e só parei quando me reformei em 1996.

PP: O curso estava inserido no ensino superior?
ML: Não. Não havia nada de praxes, não tínhamos direito a usar o traje académico ou a participar com o nosso carro no desfile da queima das fitas. Apenas tínhamos fitas – verdes – no fim de curso, um anel e o livro de caricaturas dos alunos do curso. O que tínhamos mais parecido com o ensino superior eram os padrinhos que nos acompanhavam enquanto lá andávamos, ajudando-nos sempre no que precisássemos.

PP: Enquanto professora primária, apesar dos tempos difíceis por que passou, conseguiu construir um carreira sólida?
ML: Graças a Deus sempre tive trabalho. Os primeiros tempos foram muito complicados, fui colocada bastante longe de casa – vivia no concelho de Condeixa-a-Nova e, nos primeiros tempos, dei aulas em concelhos como Tábua, Soure, Montemor. Ainda por cima, nos primeiros três anos (1961-1964) não trabalhava os anos lectivos inteiros, apenas servia como substituta de outras professoras. Isso dificultava-me muito a vida, porque o dinheiro para sustentar a família era pouco. Para além disso, o facto de dar aulas tão longe de casa obrigava-me, em alguns casos, a ficar nas terras onde leccionava. Cheguei a passar fome e, ainda por cima, não podia ver a minha família e o meu filho de ainda poucos anos.

PP: Apesar das dificuldades, foi feliz?
ML: Fui muito feliz. Apesar de ter passado por tempos difíceis, de ter lidado com as politiquices a que a conjuntura política da altura nos obrigava (assinar declarações anti-comunistas, e a casar com alguém que tivesse um ordenado igual ou superior ao meu por exemplo), de ter deixado muitas vezes a família para conseguir sustentar a minha
casa, vivi sempre consciente de que esta era a profissão que me enchia o coração e voltava a repetir tudo o que fiz. Foram tempos maravilhosos e sinto saudades das crianças. Essas sim, eram a minha maior alegria.
 
por: Rita Mendes
*Este artigo não está escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico

Sem comentários:

Enviar um comentário