A fome já aperta, a noite vai
longa e a sala está um caos. Linhas e tecidos azul, laranja, branco e preto
cortados, desfiados, enrolados uns nos outros e que se prendem nos pés a cada
passo. No sofá azul a Ana Sofia, futura professora, ensina ao João Rosado os
segredos da costura, e ele prende toda a sua atenção ao tecido branco que serão
uns calções dizendo “Ah! Pensei que fosse mais difícil!”. No chão a Mónica
Ribau e a Andreia Roberto, alunas do segundo ano de Comunicação Social tal como
o João, colam cartolinas em tecidos e costuram o melhor que podem. A Ana Pombo,
também “doutora”de Comunicação Social, desenha e corta patas e bicos em
cartolinas cor-de-laranja ajudada pelo colega de casa, Marcelo Ribau, caloiro
de Engenharia Mecânica.
A tarde foi longa, e de muitos
gastos, nas lojinhas da Baixa Coimbrã procurando os preços mais baixos. A
Mónica repete várias vezes “por favor, não vamos aos «chineses»”. Tentaram
manter os princípios e comprar o máximo nas lojas portuguesas, mas o bolso do
estudante não estica e os preços dos bazares chineses são muito competitivos. A
loja dos tecidos e a retrosaria, já estavam prontas para a Latada, um bom lucro
nesta época do ano. Mal os estudantes entram nos “Tecidos de Coimbra” um senhor
pergunta: “é para a latada? Ali ao fundo!”. À volta de uma banca uma dúzia de
estudantes compra tecidos coloridos do mais barato. Mas assim que se chega a
casa e se põe as contas na mesa, já lá vão 12 euros por pessoa só em tecidos,
tintas, linhas, roupa, cartolina e adereços. Contas feitas, mãos à obra!
E já lá vão 7 horas de trabalho. A
Mónica levanta-se e vai buscar um pacote de bolachas à cozinha. O sentimento é
geral e é a Mónica quem o exterioriza: “depois deste trabalho todo só espero
que os caloiros gostem dos fatos!”. O cansaço começa a dominar os estudantes,
muitas horas de costas vergadas olhando para agulhas e linhas após uma manhã de
aulas e uma tarde de compras. São 3 da manhã e ainda se avistam várias horas de
trabalho pela frente. É tradição os padrinhos de praxe escolherem os fatos que
os seus afilhados irão vestir e construi-los. Os caloiros só saberão qual o seu
disfarce na manhã seguinte quando se olharem ao espelho depois de
caracterizados.
Às 6h da manhã chega o afilhado
da Ana Pombo, vindo do recinto da Festa das Latas, do outro lado do rio. O sono
apodera-se da casa, o João e a Ana Sofia prometem voltar de manhã, já trajados,
os restantes deitam-se como podem pelos vários quartos e na sala desarrumada.
Três horas de sono depois, começam a tocar os despertadores. De volta às
costuras, um pequeno-almoço rápido e dão-se os últimos retoques. Os caloiros
começam a chegar, com um ar de receio, pedem, várias vezes “oh madrinha, diga
lá de que vamos vestidos”. Trazem energia à casa, começam a fazer o almoço,
furam as dezenas de latas que os padrinhos pediram com antecedência e começam a
passar fios pelos furos das latas, terão de as carregar no cortejo.
Os doutores trajam-se, preparam
as suas pastas com o nabo que os seus afilhados roubaram, conforme a tradição e
com fitas da cor da escola a que chamam grelo, que compraram a 4 euros em lojas
de trajes académicos. Os caloiros impacientam-se, o almoço é terminado e as
costuras e colagens parecem nunca mais acabar. O cansaço e o desespero vencem o
perfeccionismo e os agrafos substituem as linhas. Os alunos do primeiro ano
vestem os collants com as cores da Escola Superior de Educação de Coimbra:
laranja e azul. As madrinhas e padrinhos começam a vestir os caloiros. “Estes
calções não servem ao meu afilhado!” grita a Andreia. No fim, bem ou mal, tudo
bate certo. Os caloiros estão prontos a ser pintados. Forma-se uma fila em
frente à casa-de-banho e os caloiros vão saindo branquinhos. Começa a sessão de
fotografias e a casa ficou num estado lastimável.
O cortejo vai animado, caloiros
chocalhando latas, subindo pela Rua dos Combatentes da Grande Guerra, canta-se
ao despique músicas dos vários cursos e exalta-se a escola e Coimbra. “Coimbra
é nossa, Coimbra é nossa!” ouve-se por todo o lado, e de facto neste dia
Coimbra mostra o que mais a caracteriza: é a cidade dos estudantes. Nos Arcos
um aglomerado de estudantes continua cantando e convivendo e os doutores vão
pedindo autorização aos seus colegas para que os seus afilhados mordam o nabo.
No fim, doutores e caloiros, já todos morderam os nabos. Nas mãos dos caloiros,
os penicos vão cheios de rebuçados oferecidos pelos padrinhos para adoçar a boca
após cada dentada no nabo. O traçadinho e a cerveja também fazem as suas
aparições e no fim da tarde algumas ambulâncias do INEM também dão sinal de
vida. As latas ficam pelo chão, poucas se aguentam até ao fim.
Descendo a Avenida da República
os pés dos doutores já doem, os caloiros já têm frio e ainda o cortejo vai a
meio. Nas várias fontes se agrupam estudantes. “Está de quatro, caloiro!”
gritam os doutores, capas negras pelos ombros, apoderam-se dos penicos e banham
os caloiros que estão de gatas dentro das fontes. As cantigas continuam, os
apitos fazem-se ouvir e encontram-se amigos e conhecidos de todos os cursos.
Carrinhos das compras foram roubados e servem para as mais diversas funções:
carregam bebidas, doutores ou caloiros, e alguns foram decorados a preceito.
Grupos de Navegantes da Lua, peixes do filme Nemo, odaliscas, canecas de
cervejas e muito mais, passeiam-se pela avenida. A família do Tio Patinhas
ainda vai pintada de branquinho, com os calções brancos cheios de algodão e os
seus adereços e roupas coloridos. Mantêm-se unidos e animados, os nabos vão
acabando e prosseguem de fonte em fonte até à beira do Mondego.
Escolhem-se as docas de Coimbra como
local de baptismo, já todos tremem de frio e se queixam do cansaço. As docas
estão mais sossegadas e começam os preparativos. Traçam-se as capas, seguram-se
as pastas no braço esquerdo e o penico cheio de água na mão direita. Os
caloiros ajoelham-se com a madrinha e o padrinho a cercá-los e após conselhos e
palavras de incentivo a Andreia, a Ana Pombo, a Mónica e o João, proferem as
palavras mais importantes do dia: “Em nome da praxe, eu te baptizo”, e as águas
frias do Mondego são derramadas por cima dos novos estudantes, abençoando-os e
acolhendo-os na antiquíssima e sempre jovem, cidade dos estudantes.
Abraços e lágrimas de emoção,
trocados entre palavras que serão guardados com carinho e ensinamentos que não
se esquecem. A meio do curso de três anos os doutores de Comunicação Social
atiram a nabiça ao Mondego, pedem sorte para o curso, a profissão e a vida. Num
abraço tingido de negro gritam de felicidade, mais um momento juntos, mais um
episódio da vida académica. “São amigos que levamos para a vida” afirmam.
E ao fim do dia, após todo o esforço e animação, ecoa sobre a margem do Mondego o Fado de Amália Rodrigues: “Coimbra é uma lição/ de sonho e tradição”.
Catarina Rodrigues, R1
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